Boletim FCM

 

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ISSN: 2595-9050
 

O problema da deficiência do brincar

Data de publicação
08 out 2019

Diz o dicionário Aurélio sobre brincar: divertir-se infantilmente, entreter-se, gracejar.

Essas definições, certamente, revestem e estão presentes no ato de brincar. Mas o que de fato está acontecendo com a criança, o jovem, o adulto e o idoso que está “brincando”? O que um bebê de cinco meses está fazendo quando está brincando? O que isso tem a ver com o que um jovem está fazendo quando joga futebol ou anda de skate? Ele está sempre brincando, mesmo na atividade profissional esportiva?

Alguns pensadores refletiram sobre o brincar da criança: Freud, Winnicott e Klein no campo da psicanálise; Piaget e Vigotski no campo da cognição e Gallahue no âmbito do desenvolvimento motor e da atividade esportiva. Para Piaget, brincar é “... uma atitude que engloba a curiosidade e o interesse, o prazer e a descoberta do movimento e suas consequências, a incorporação de habilidade, sua reprodução e aperfeiçoamento...”.

Isso impacta o afeto, a psique e a cognição, em um contexto específico, que é o da família.

Essa fase inicial do desenvolvimento da criança vai impactar toda a sua vida, desde as oportunidades de desenvolvimento motor, o afeto, as relações, a capacidade de aprender, etc.. Em resumo, a criança se desenvolve brincando, isto é, a “tarefa” primordial da criança é brincar.

brincar
Foto: Mario Moreira - FCM/Unicamp

Inicialmente, a criança brinca interagindo com um adulto, ou vários, mas aos poucos ela vai brincando sozinha. Após os três anos, a criança vai brincando com outras crianças, em atividades muitas vezes inventadas por elas, incompreensíveis para os adultos. Somente após os cinco a sete anos, é interessante apresentar jogos com regras, que mesmo sendo compreendidas, muitas vezes são burladas pela criança.

Sem entrar na discussão sobre qual o brinquedo, ou o ambiente “ideal” e “mais adequado” para cada idade, fica claro que o importante é manter essa chama da curiosidade e da experimentação acesa, ampliar a imaginação e a fantasia.

Diferentemente do crescimento somático e do desenvolvimento motor inicial, as aquisições que vem com o brincar dependem das atividades e sua vivência. Winnicott ressalta que algumas aquisições e possíveis lacunas podem comprometer desenvolvimentos futuros para sempre e que também “excessos” e exposições a situações não assimiláveis, podem ser duradouras.

A brincadeira é a parte criativa dessa apreensão do mundo, que idealmente nunca deixaria de estar presente. Seria um espaço ocupado pelos impulsos e desejos da criança (e de jovens, e de adultos) em relação com elementos da realidade, responsável pela “criação e recriação” constantes do mundo (das relações pessoais, do afeto, da cultura, etc.).

O brincar é o espaço criativo entre a realidade interna e a realidade externa do indivíduo.

Peter Gray, um psicólogo da linha darwinista, vem há muitos anos estudando o brincar como componente essencial do desenvolvimento integral. Nesse caminho, abraçou o conceito do Déficit do Brincar, referido às mudanças na cultura educacional das famílias e escolas, que interferem sobre a espontaneidade e criatividade inerentes ao ato de brincar. Baseado numa perspectiva histórica, afirma que o brincar das crianças é próprio de cada tipo e momento da organização social em que ela vive.

Por exemplo, quando os humanos eram caçadores, as brincadeiras simulavam instrumentos e tarefas próprias dos adultos. Com a agricultura, as crianças vão precocemente para o trabalho, o que reduz o espaço do brincar. Isso se acentua durante a industrialização, com crianças trabalhando o dia inteiro desde os três anos de idade, de acordo com o Relatório Chadwick, publicado em 1842, na Inglaterra.

Com a valorização da infância como período de proteção da criança para o aprendizado e a especialização da educação infantil, abre-se um novo tempo para o brincar como atividade espontânea e em ambientes adequados, como creches e escolas. É também, nesse momento, que as crianças maiores voltam a frequentar as ruas, quando não estão na escola. Época também de resgate de brinquedos e brincadeiras culturalmente estabelecidos – aro, cabra-cega, pega, esconde, bola, peão, estilingue, etc.

Essa Era de Ouro do brincar não é igual para as diversas culturas, regiões e famílias. Os americanos sempre estimularam seus filhos a fazer alguma coisa para “ganhar um troco”: vender jornal, cortar grama, limpar neve... No Brasil, o trabalho infantil só foi regulamentando na década de 1930. E o tempo de brincar sempre variou muito conforme a condição social da família.

brincadeira
Foto: Mario Moreira - FCM/Unicamp

Ocorre que o mundo é feito pelos adultos, e para os adultos! Ter um filho “preparado” para a dureza da vida adulta virou meta dos pais em geral, que passam a ocupar a agenda dos filhos com tarefas mais “construtivas”, melhores do que deixá-los “por aí brincando, perdendo tempo”. Temos também os pais empenhados em transformar os filhos em profissionais dos esportes: o que seria uma brincadeira de jovens e adultos (jogos) passa a ser trabalho, desde antes da criança conseguir separar tarefa (trabalho) de lazer.

Hoje, os espaços para as crianças brincarem são exíguos: praças, parques, ruas, centros esportivos públicos, são locais inseguros para crianças e famílias no Brasil. E se olharmos os edifícios, há muito mais espaço para os carros do que para o convívio de crianças.

E temos as “telas”, PADs, TVs, smartphones, vídeo-games, realidade virtual: todos oferecem muitas brincadeiras e jogos que facilitam o aprendizado do uso da informática, fundamental para a futura vida adulta.

O problema está em substituir o espaço da criatividade, da brincadeira conduzida pela imaginação da criança, por uma interação com jogos já pautados por regras, ou filmes e desenhos com os quais a criança estabelece uma relação passiva.

Gray associa essa pressão sobre a espontaneidade do brincar, do prazer, da criatividade presentes no ato, com o aumento do sofrimento mental e afetivo de crianças e jovens, expressos em transtornos e doenças psíquicas.

Há de fato uma redução do brincar espontâneo, e uma perda de qualidade desse espaço. Mas também é possível notar que esse fenômeno, entre outros, como a obesidade, a insegurança, a erotização precoce, etc. decorrem de mudanças profundas no mundo adulto (o mundo real?), especificadas para a infância e a adolescência.

O brincar é necessário para o desenvolvimento saudável da criança e do jovem, assim como para a saúde mental, o prazer e a alegria dos adultos. O cerne da brincadeira não está no brinquedo ou no jogo, mas na interação do indivíduo com ele, no prazer da atividade e na sua significação para toda a vida.

Daí a importância para o adulto de ter um “hobby”, praticar um esporte, tocar um instrumento, desenvolver uma expressão artística, desfrutar da arte, etc. A falta desses momentos lúdicos para os adultos não seriam, todos, tipos de “sedentarismos”?


Roberto Teixeira Mendes é médico pediatra formado pela FCM e atua como professor colaborador na assistência e na pesquisa sobre obesidade da criança e do adolescente