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ISSN: 2595-9050
 

A tuberculose na História

Data de publicação
14 dez 2019

Peste branca, tísica consumpção/consunção ou popularmente chamada de doença do peito. Estes são alguns dos termos pelos quais essa velha moléstia foi e é conhecida através dos tempos. O termo tuberculose é recente: ele foi cunhado em 1839 por Schöenlein (1793-1864), baseado no nome dado em 1680 por Sylvius à lesão nodular, o tubérculo, encontrado em pulmões de doentes autopsiados.

As origens desta enfermidade infecto-contagiosa não estão, até o momento, completamente esclarecidas. A hipótese mais aceita é que ela tenha surgido há aproximadamente oito mil anos, a partir do contato com auroques (Bos primigenus) – bois selvagens - contaminados com a bactéria causadora da tuberculose bovina – Mycobacterium bovis. Acredita-se que pequenos núcleos populacionais mantiveram desde o período pré-histórico uma discreta endemicidade e a disseminação da tuberculose teria acompanhado as sucessivas e crescentes correntes migratórias humanas.

Assim, nem sempre a tísica teve a importância epidemiológica que alcançou nos séculos XIX e XX, e suas causas também sofreram diferentes interpretações ao longo dos séculos. Numa época em que a medicina ocidental dava seus primeiros passos, Hipócrates (450 a.C.) afirmava que um tísico nascia de outro igualmente doente ; essa hipótese sobre a hereditariedade foi refutada somente no século XIX (1865) por Vellemin, que inoculou material de tuberculosos em animais de laboratório e os tornou doentes.

A despeito da forma mais conhecida da doença ser a pulmonar, pele, rins, intestinos e ossos também podem ser atingidos. A forma óssea da tuberculose atinge a coluna em cerca de 50% dos casos e pode resultar na perda de um corpo vertebral e consequentes deformações na coluna. Esses danos foram descritos por sir Percival Pott em 1799; desde então essa forma é conhecida por Mal de Pott, que foi identificado em antigas civilizações, incluindo múmias egípcias (3700 a 1000 a.C.).

Livro O controle da tuberculose
Ilustração de capa do livro "O controle da tuberculose". Autor: Hélio Fraga. Editora: Mistério da Saúde

A presença da tuberculose pré-colombiana na América do Sul foi confirmada em achados arqueológicos no Peru, Venezuela e Chile, inclusive em sua forma disseminada (miliar).

Todavia, acredita-se que esta doença e seu agente causal teriam comportamentos diferentes aos observados após a colonização européia. Sustenta-se que a tuberculose americana original teria ocorrido pela contaminação humana com uma micobactéria livre, primitiva, quiçá a própria Mycobacteria bovis, menos virulenta que a trazida pelos europeus após a descoberta das Américas.

Os indígenas parecem ter sido, de fato, os principais atingidos durante o período colonial. No Brasil, os padres Manuel da Nóbrega e Anchieta são alguns dos prováveis portadores notórios da tuberculose e certamente contribuíram para a sua disseminação entre os nativos. Contudo, populações urbanas coloniais também sofriam do mal, e a escrófula (tuberculose linfática que cursa com o quadro de ínguas supurativas) é descrita como uma das doenças que importunavam cidadãos paulistanos no século XVIII. Entretanto, uma das principais armas da época no tratamento para esta manifestação da tísica, não poderia ser utilizado no Brasil.

Durante doze séculos a terapêutica contra a escrófula na Europa acontecia através de um curioso e peculiar ritual: o toque real, bastante representativa da crença da época. Com o passar dos séculos o poder de cura real tornou-se desacreditado, mas a última cerimônia ainda ocorreu em pleno século XIX.

Na Europa dos séculos XVIII e XIX, principalmente durante e após a Revolução Industrial, com as migrações cada vez maiores para ambientes urbanos confinados e de má higiene, a tuberculose encontrou seu espaço na história como a causadora de muitas tragédias sociais. Na reforma urbana de Paris promovida pelo Barão de Haussmann estima-se que nada menos de 80% da população carente, expulsa para a periferia de Paris, tenha sucumbido frente à doença. No restante da Europa dos anos 1800 a tísica era apontada como causadora de 30% das mortes em geral e no Brasil de 1855 estima-se que um em cada 150 habitantes era portador do mal.

Em princípios do século XIX, Laennec afirmava ser a tuberculose, juntamente com a sífilis, o resultado de “excessos venéreos”. Tal assertiva era corroborada pelo fato de ser a peste branca a principal causa de óbito entre as prostitutas de Paris e ligava ainda mais a doença ao erotismo, em uma época em que se considerava um rosto esquelético, sulcado e de extrema palidez como um irradiador de mistério e fascinação.

Entretanto, o encanto da doença foi quebrado diante da alta morbi-mortalidade da descoberta do agente causal e da forma de sua transmissão. A descoberta em 1882 do bacilo causador da tuberculose humana - Mycobacterium tuberculosis, por Robert Koch (1843-1910), da forma de transmissão da doença através de gotículas produzidas pela tosse que se espalhavam pelo ambiente (Pflügge, 1847-1923) e pelo surgimento em 1895 da radiografia (Roentgen, 1845-1923), resultaram numa melhor caracterização clínica da doença e consequente aprimoramento diagnóstico.

Uma vez estabelecidas essas descobertas, as autoridades passaram a dirigir forças para seu combate, controle e tratamento, baseados em duas principais premissas. A primeira é que a tuberculose poderia ser prevenida através do controle comportamental e isolamento de seus portadores; e a segunda é que ela era tratável, desde que o diagnóstico precoce fosse estabelecido. Diante da então ausência de uma terapêutica específica, as recomendações médicas visavam à obtenção de novos hábitos de higiene, boa alimentação, ar fresco, exercícios e períodos de descanso supervisionados.

A despeito dos avanços alcançados por determinações higiênicas, o grande controle da tuberculose surgiria apenas a partir de 1943 com o surgimento da estreptomicina. Sua erradicação, entretanto, ainda parece estar longe de ser alcançada.


Profa. Dra. Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel
Docente da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, desde 1990, é membro do Grupo de Estudos de História da Ciência da Unicamp, desde 2011.Tem experiência na área de Medicina Interna, com ênfase em Cardiologia, atuando principalmente nos seguintes temas: doença de chagas, semiologia médica e história da medicina.