Os transtornos mentais gerados por uma pandemia seja entre os profissionais de um hospital seja entre os pacientes e familiares são processos graves em termos de saúde pública que não podem ser negligenciados. Sabendo disso, os coordenadores do setor de psicologia e psiquiatria da Unicamp agiram rápido e desde março começaram a atuar. Um grupo de atendimento voluntário criou vários canais de comunicação com os profissionais de saúde do HC e, desde então, em menos de cinco meses, já propiciou o suporte a mais de 210 pessoas. As ações foram realizadas por meios eletrônicos.

Os casos, com diferentes níveis de severidade, demandaram desde atendimentos rápidos, com conversas de alguns minutos, até sessões de psicoterapia mais estruturadas. “Nós montamos um grupo de apoio aos profissionais de saúde com 20 pessoas de vários departamentos e, diante da grande receptividade do pessoal do HC, passamos atuar desde o fim de março. Mesmo se tratando de uma pandemia nós atendemos bastante gente, o que mostra que a demanda existe e é importante”, afirma Renata Azevedo, chefe do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. “Temos desde escutas breves, de pessoas que acabavam de perder um paciente e precisavam conversar, até profissionais que tiveram 8 sessões de psicoterapia”, afirma Renata.

A professora Renata Azevedo: o atendimento envolve desde escutas breves, de pessoas que acabavam de perder um paciente até profissionais que tiveram 8 sessões de psicoterapia

A professora Renata Azevedo: o atendimento envolve desde escutas breves até profissionais que tiveram 8 sessões de psicoterapia

Desde que a pandemia surgiu no horizonte brasileiro, e a repercussão dela sobre a saúde mental dos profissionais de saúde começou a ser grande em outros países, casos da China e da Itália, os profissionais da Unicamp começaram a elaborar o plano de ação.

“Entre a chegada da ficha de quem procura ajuda e a definição do horário do atendimento não demoramos mais do que 24 horas”, diz a chefe da psiquiatria da FCM. No início, a ansiedade estava mais relacionada com a nova rotina no hospital e o risco de a pessoa ser um agente de transmissão do vírus na volta para casa no final de um dia de trabalho. 

Por causa da demanda ainda grande, explica Renata, e pelo fato de a acolhida via canais eletrônicos nem sempre ser o mais adequado, o grupo passou também a oferecer uma sessão de atendimento presencial no fim de julho. “São grupos pequenos, para conseguirmos seguir todas as regras do isolamento social. E, além disso, estamos fazendo na saída dos turnos do hospital para evitar ao máximo qualquer tipo de deslocamento desnecessário”, diz Renata.

O atendimento aos profissionais de saúde do HC é apenas um dos braços de atuação do grupo de apoio psicológico e psiquiátrico em ação na Unicamp. As famílias e os pacientes internados por causa da Covid-19 também recebem muita atenção. “Com um grupo de residente e dois supervisores começamos a perguntar para as famílias das pessoas internadas se elas gostariam de conversar. É algo super importante porque os pacientes internados estão sem poder receber visita por causa do risco de contágio. Como os pacientes podem ficar com celular no quarto e eles realmente passam muito tempo sozinhos, começamos a permitir que os familiares mandassem vídeos, músicas e fotos para os pacientes que passaram a assistir a tudo durante as visitas virtuais. É uma sensação muito interessante que passamos a vivenciar” diz Renata. Segundo a médica da Unicamp, mesmo no caso das famílias enlutadas, o contato com o familiar dentro da UTI era importante. “A despedida acabou sendo feita de forma remota porque também não existia condições de se fazer velório”, diz. Mesmo entre as pessoas que já tinham algum outro tipo de doença, a morte durante a pandemia não deixa de ser o resultado de um quadro agudo. “Nós precisamos estar atentos a tudo isso. Às vezes, morreram dois ou três membros de uma mesma família e aquela pessoa que não perdeu a vida foi quem acabou levando a contaminação para o interior da residência. O impacto disso é gigantesco”, diz.

Sentimento de sobrevivência

Todos os processos de atendimento feito dentro do HC desde março, segundo Renata, acabaram de virar dois projetos de pesquisa que vão ser desenvolvidos nos próximos meses. “Não vamos estudar o que fizemos em si, mas sim qual foi o impacto real dos atendimentos realizados tanto entre os profissionais de saúde quanto com os familiares e pacientes”, explica Renata. Ao todo, os voluntários da Unicamp acompanharam mais de 70 famílias. “Vamos ligar para as pessoas que tiveram o nosso atendimento e tentar mapear quais foram os resultados, sejam positivos ou negativos, deste apoio online que elas receberam. O mesmo será feito com os profissionais”, diz a médica. 

Em termos gerais, além das pesquisas científicas em andamento, Renata avalia que está longe o momento de se pensar em diminuir o monitoramento da saúde mental dos profissionais de saúde ou das pessoas como um todo, muito pelo contrário. “Nós não estamos acompanhando uma avalanche de casos de estresse pós-traumático, um dos processos que podem ocorrer depois de eventos como uma pandemia segundo sugere a literatura. Mas isso não significa que eles não possam aparecer de alguma outra forma mais crônica”, diz. Apesar de no Brasil, historicamente, a cultura do país nunca estar muito associada a altas taxas de estresse pós-traumático. 

“Estamos observando também que quem passou pela doença está demonstrando um sentimento positivo que é o de ter sobrevivido. Eles dizem: ‘passei por uma coisa tão dramática, até fui para a UTI, e agora estou bem aqui. Passei a dar um outro valor para a vida’. Isso é da nossa cultura e não deixa de ser também um dado importante para avaliarmos”, afirma Renata. 

Mas existem vários desdobramentos sobre a saúde mental das pessoas que também ainda precisam ser mais bem investigados, segundo a especialista da Unicamp. Tem a relação entre as crianças e os pais, por exemplo, que passam por um momento único, inclusive com a necessidade de que as filhas e os filhos passem muitas horas em frente a tela, para estudar. 

Mesmo entre os médicos e psicólogos ainda existem outras aflições em curso relacionadas com pacientes que não se contaminaram na pandemia. “No caso dos profissionais, tem muita gente que está realmente aflita de não conseguir dar um tratamento mais adequado para aqueles pacientes que não estão com a Covid mas, por causa dela, não estão frequentando o hospital. Também precisamos estar atentos para isso. Ainda temos muita coisa pela frente”, diz Renata Azevedo. Na avaliação da especialista, o aumento de casos de quadros depressivos, que são diferentes dos episódios de estresse pós-traumático, pode ocorrer no médio prazo.

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Matéria originalmente publicada no Portal da Unicamp.