Rastreamento ultrassonográfico de cromossomopatias no primeiro trimestre da gestação

Jan de 2016.

Autor: Dr. Danilo Eduardo Abib Pastore

                                                                                                                                                                                           

Introdução

A ultrassonografia obstétrica realizada entre a 11ª a 14ª semanas de gestação, também conhecida como exame morfológico de primeiro trimestre, tem importância indiscutível no rastreamento de anormalidades cromossômicas (cromossomopatias ou aneuploidias), especialmente aquelas que são compatíveis com a evolução da gestação até o termo. Dentre estas destacam-se, especificamente, as trissomias dos cromossomos 21 (Síndrome de Down), 18 (Síndrome de Edwards) e 13 (Síndrome de Patau).

A medida da espessura da translucência nucal (TN), associada a avaliação de outras características fenotípicas fetais e maternas, permite a detecção de aproximadamente 95% das anormalidades cromossômicas (isto quando 2,5% das gestantes com maior risco calculado são submetidas a procedimentos invasivos diagnósticos, tais como biópsia de vilosidades coriônicas ou amniocentese). A medida da TN, além de permitir calcular o risco de trissomias, também pode contribuir para a detecção de malformações cardíacas, displasias esqueléticas e síndromes genéticas.

As características fenotípicas fetais estudadas no exame morfológico incluem, além da TN: o aspecto dos ossos nasais, os padrões de fluxo no ducto venoso e na valva tricúspide.

Algumas características maternas também influem no cálculo de risco para aneuploidias, destacando-se: a idade materna, a idade gestacional (IG), a história prévia de cromossomopatias e os níveis séricos da subunidade β da gonadotrofina coriônica humana (β-HCG) e da proteína A associada à gestação (PAPP-A).

Ademais, há outros relevantes benefícios do exame ultrassonográfico de primeiro trimestre, incluindo: a confirmação da vitalidade fetal, a datação da gravidez, o diagnóstico precoce de malformações fetais graves e de gestações múltiplas. Neste caso, este exame também oferece a possibilidade de determinação da corionicidade, fator prognóstico de suma importância em gestações múltiplas.

 

 

Translucência nucal

A idade gestacional considerada ótima para a medida da TN é a compreendida entre 11 semanas e 13 semanas e seis dias. O comprimento cabeça-nádega (CCN) mínimo é de 45 mm e o máximo, de 84 mm.

As razões para a seleção de 13 semanas e seis dias como o limite superior são:

  • oferecer a mulheres com fetos acometidos a opção de interrupção da gravidez no primeiro trimestre;
  • a incidência de acúmulo de fluido nucal em excesso em fetos com anomalias cromossômicas é menor entre 14–18 semanas;
  • a taxa de sucesso na obtenção da medida da TN entre 10–13 semanas é de 98–100%, diminuindo para 90% na 14ª semana, pois o feto assume uma posição vertical, o que dificulta a obtenção adequada da imagem.

Existem duas razões para a escolha de 11 semanas como a idade gestacional mais precoce para a medida da TN:

  • primeiramente, porque a biópsia de vilosidades coriônicas (BVC) não deve ser realizada antes dessa idade gestacional (devido ao risco de amputação transversa de membros fetais);
  • em segundo lugar, sabe-se que muitas malformações fetais graves podem ser diagnosticadas por meio da ultrassonografia no primeiro trimestre, desde que a idade gestacional mínima por ocasião do exame seja de 11 semanas.

Para a avaliação da TN, requer-se alguns requisitos do aparelho de ultrassonografia:

  • este deve ser de alta resolução;
  • ter função cine-loop;
  • possuir calibradores de medida (calipers) que possibilitem medidas de até décimos de milímetros.

A TN pode ser obtida satisfatoriamente por via transabdominal; porém, em 5% dos casos pode ser necessário realizar o exame por via endovaginal.

Na imagem para a medida da TN, devem estar incluídos somente a cabeça e a região superior do tórax do feto. A imagem deve ser ampliada o máximo possível, e isso pode ser feito tanto antes ou depois de congelá-la. Além disso, deve-se diminuir o ganho a fim de minimizar subestimações ocasionadas por linhas pouco precisas delimitando a TN.

A medida é realizada em um corte longitudinal mediano do feto, como o utilizado para a aferição do CCN. A TN deve ser medida com o feto em posição neutra, pois a hiperextensão cervical poderá acarretar em aumento da medida em até 0,6 mm, enquanto que a flexão exagerada poderá diminuí-la em até 0,4 mm.

É importante se distinguir a pele do feto da membrana amniótica já que, nessa fase da gestação, ambas se apresentam como finas linhas hiperecogênicas. A espessura máxima do espaço anecóico (translucência) entre a pele e o tecido celular subcutâneo que recobre a coluna cervical deve ser medida. Os calipers devem ser posicionados exatamente sobre as linhas ecogênicas das bordas que definem a TN, de tal maneira que se tornem quase invisíveis ao se fundirem com estas bordas, e não com o fluido. Durante o exame, mais de uma medida da TN deve ser obtida e a maior delas é a que deve ser utilizada.

Eventualmente, o cordão umbilical pode situar-se em torno da região cervical do feto, o que pode levar à falsa impressão de uma TN aumentada. Nesses casos, as medidas da TN cranialmente e caudalmente ao cordão são diferentes e, para o cálculo do risco, é recomendado que se utilize a média entre as duas.

O cálculo do risco específico para aneuploidias, para cada paciente, provém da multiplicação do risco a priori (risco basal), relacionado à idade materna e à idade gestacional, pelo fator de correção da TN. Tal fator depende do grau de desvio da medida em relação à mediana normal esperada para o CCN.

Com relação à eficácia no rastreamento para a trissomia do cromossomo 21, estudos prospectivos em mais de 200.000 gestações, incluindo mais de 900 fetos com trissomia do 21, têm demonstrado que o rastreamento por meio da TN pode identificar mais de 75% dos fetos com esta condição, considerando-se uma taxa de falso-positivo de 5%.

A prevalência de anomalias cromossômicas diminui exponencialmente com a espessura da TN. No grupo de fetos com anomalias cromossômicas, cerca de 50% estão acometidos pela trissomia do cromossomo 21, 25% pela trissomia do cromossomo 18 ou do 13, 10% pela síndrome de Turner, 5% pela triploidia e 10% por outra cromossomopatia.

A TN aumentada não identifica, necessariamente, os fetos trissômicos que evoluirão para óbito intra-uterino. Além disso, a taxa de detecção da trissomia do 21, observada com o rastreamento por meio da TN, é somente 2% a 3% mais elevada do que a taxa de detecção de gestações acometidas, que, potencialmente, resultariam em nascidos vivos.

A TN aumentada (espessura acima do percentil 95 esperado para a IG) é uma condição que advém de diversos processos fisiopatológicos distintos, os quais podem ser desencadeados por:

  • defeito ou falência cardíaca;
  • anomalias no sistema linfático;
  • composição alterada da matriz extracelular da derme;
  • compressão do mediastino por malformações na caixa torácica ou conteúdos intrato­rácicos anômalos;
  • anemia fetal;
  • hipoproteinemia;
  • infecções.

Os quatro primeiros frequentemente contribuem, isola­damente ou em conjunto, para o aumento da espessura da TN nos fetos cromossomicamente anormais. Entretanto, tais fatores não são exclusivos dessas condições. Similarmente, diferentes doenças em fetos sem alterações cromossômicas podem levar ao aumento da TN por meio de diferentes mecanismos fisiopatológicos.

Segundo alguns autores, a prevalência de mal­formações estruturais graves em fetos sem anomalias cromossômicas aumenta com o acréscimo da espessura da TN:

  • em  torno de 1,6% em fetos com TN abaixo do percentil 95 para a IG;
  • 2,5% naqueles com TN entre os percentis 95 e 99 (TN=3,5 mm);
  • 10% naqueles em que a TN mede de 3,6 a 4,4 mm;
  • 19% quando a TN mede de 4,5 a 5,4 mm;
  • 24% em fetos com TN entre 5,5 e 6,4 mm;
  • 46% naqueles em que a TN é maior do que 6,5 mm.

Em fetos normais, a prevalência de óbito aumenta exponencialmente com a espessura da TN de 1,3%, naqueles com TN entre os percentis 95 e o 99, até cerca de 20% para aqueles com medidas da TN de 6,5 mm ou superiores. Em sua maioria, o óbito ocorre até a 20ª semana. Além disso, geralmente esses fetos evoluirão para hidropisia grave.

 

 

Osso nasal

O osso nasal de um feto pode ser visibilizado por meio da ultrassonografia entre 11 semanas e 13+6 semanas de gestação. Vários estudos têm demonstrado uma alta associação entre a ausência do osso nasal entre 11–13+6 semanas e a trissomia do cromossomo 21, assim como com outras anomalias cromossômicas. Nos dados combinados desses estudos em um total de 15.822 fetos, o perfil fetal foi examinado com sucesso em 97,4% dos casos, sendo que o osso nasal estava ausente em 1,4% dos fetos cromossomicamente normais e em 69% dos fetos com trissomia do cromossomo 21.

Os critérios para adequada avaliação do osso nasal são os mesmos para a avaliação da TN. Um corte longitudinal mediano deve ser obtido, com o feto em posição neutra, e o transdutor deve ser posicionado paralelamente à direção do osso nasal. Na imagem do nariz, deve-se visualizar somente três linhas distintas. A linha superior representa a pele e a inferior, que é mais espessa e ecogênica do que a pele sobrejacente, representa o osso nasal. Uma terceira linha, quase em continuidade com a pele, mas em um nível mais elevado, representa a ponta do nariz.

Em fetos cromossomicamente normais, o osso nasal pode não ser visível em menos que 1% nas populações de origem caucasiana e em cerca de 10% naquelas de origem afro-caribenha.

Já em fetos com anomalias cromossômicas, o osso nasal não é visível em 60% a 70% daqueles com trissomia do cromossomo 21, em cerca de 50% dos fetos com trissomia do cromossomo 18 e em 30% dos fetos com trissomia do cromossomo 13.

Para uma taxa de falso-positivo de 5%, o rastreamento por meio da medida da TN e avaliação do osso nasal, associada à dosagem sérica materna da fração livre do bhCG e PAPP-A, pode identificar mais de 95% das gestações acometidas pela trissomia do cromossomo 21.

 

Frequência cardíaca fetal

A frequência cardíaca fetal (FCF) passa de, aproximadamente, 100 bpm na 5ª semana para 170 bpm na 10ª semana, nas gestações normais. Na 14ª semana, diminui para 155 bpm.

No período de 11–13+6 semanas, é reconhecida a associação entre a trissomia do cromossomo 13 e a síndrome de Turner com a presença de taquicardia, ao passo que na trissomia do cromossomo 18 e na triploidia se nota bradicardia fetal.

Na trissomia do cromossomo 21, há um leve aumento da FCF. Deste modo, a medida da frequência cardíaca fetal não melhora substancialmente o rastreamento da trissomia do cromossomo 21 no primeiro trimestre, mas ela é importante no auxílio diagnóstico de fetos com trissomia do cromossomo 13.

 

 

Doppler do ducto venoso

O ducto venoso é um pequeno vaso que aparece no embrião humano em torno do 30° dia de vida, ou com 6,5 mm de comprimento crânio-nádega. Trata-se de uma derivação que direciona o sangue bem oxigenado da veia umbilical para a veia cava inferior, chegando à circulação coronária e cerebral por meio de um fluxo preferencial do sangue através do forame oval para o átrio esquerdo. A onda de fluxo sanguíneo no ducto venoso é característica, com alta velocidade durante a sístole ventricular (onda S) e a diástole (onda D), e fluxo anterógrado durante a contração atrial (onda A).

Padrões anormais de fluxo no ducto venoso incluem, além do índice de pulsatilidade acima do percentil 95 para a idade gestacional, a própria ausência da onda A ou a presença de onda A reversa. O fluxo anormal no ducto venoso, no período de 11-13+6 semanas, está associado com anomalias cromossômicas, malformações cardíacas e desfecho desfavorável da gestação. Em estudos que compreenderam mais de 5.000 gestantes em centros especializados, incluindo cerca de 280 fetos com trissomia do cromossomo 21, observou-se a existência de fluxo anormal no ducto venoso em cerca de 80% dos fetos com essa cromossomopatia e em cerca de 5% dos fetos euplóides.

A associação entre a TN aumentada e o fluxo anormal no ducto venoso é praticamente inexistente. Deste modo, a avaliação do ducto venoso pode ser combinada à medida da TN para aprimorar a eficácia do rastreio precoce da trissomia do cromossomo 21 por meio da ultrassonografia de primeiro trimestre.

 

 

Doppler da valva tricúspide

É reconhecida uma estreita associação entre a regurgitação da valva tricúspide fetal e o aumento na prevalência de defeitos cromossômicos. Diversos estudos demonstraram que a ecografia realizada entre a 11-13+6 semanas de gestação diagnosticou a regurgitação da tricúspide em 2 a 3% dos fetos cromossomicamente normais e em 60 a 70% dos fetos com trissomia do 21. Sabe-se que a prevalência da regurgitação da tricúspide cresce com o aumento da espessura da TN e na presença de outros defeitos cardíacos, mas diminui com o avanço da gravidez.

Para avaliação do fluxo tricúspide, a imagem deve ser magnificada de forma que só o tórax esteja incluído na tela. A presença ou ausência da regurgitação da tricúspide é determinada pelo Doppler pulsado. A amostra de volume é posicionada verticalmente, compreendendo todos os folhetos da válvula tricúspide. O ângulo de direção do fluxo deve ser menor que 30°. O diagnóstico de regurgitação da tricúspide, no primeiro trimestre, dá-se quando estiver presente em pelo menos metade da sístole e com velocidade maior que 80 cm/s.

A avaliação rotineira da regurgitação da tricúspide no rastreio de cromossomopatias no primeiro trimestre poderia promover uma oportunidade e otimização para o diagnóstico precoce das malformações cardíacas, uma vez que é necessária a adequada visualização das quatro câmaras cardíacas para que o exame seja realizado corretamente. O próprio diagnóstico de regurgitação tricúspide serviria como um alerta para a presença de defeito cardíaco subjacente.

 

 

Referências

  1. Nicolaides KH, DeFigueiredo DB. O exame ultra-sonográfico entre 11–13+6 semanas. Fetal Medicine Foundation, Londres 2004. Disponível em http://www.fetalmedicine.com/synced/fmf/FMF-portuguese.pdf
  2. Nicolaides KH. Nuchal translucency and other first-trimester sonographic markers of chromosomal abnormalities. Am J Obstet Gynecol 2004; 191:45–67.
  3. Murta CGV, França LC. Medida da Translucência Nucal no Rastreamento de Anomalias Cromossômicas. Rev Bras Ginecol Obstet. 2002; 24(3): 167-73.
  4. Nicolaides KH, Duarte LB, Marcolim AC, Duarte G. Rastreio no primeiro trimestre para anomalias cromossômicas. Rev Bras Ginecol Obstet. 2007; 29(12): 647-53.
  5. Oliani AH, Vaz-Oliani DCM et. Al. Ultrassonografia morfológica do primeiro trimestre – passo a passo. Revista Brasileira de Ultrassonografia 2015: 18: 9-16.
  6. Peralta CFA, Barini R. Ultrassonografia obstétrica entre a 11ª e a 14ª semanas: além do rastreamento de anomalias cromossômicas. Rev Bras Ginecol Obstet. 2011; 33(1): 49-57.

 

. Rastreamento ultrassonográfico de cromossomopatias no primeiro trimestre da gestação. Dr.Pixel. Campinas: Dr Pixel, 2016. Disponível em: https://drpixel.fcm.unicamp.br/conteudo/rastreamento-ultrassonografico-de-cromossomopatias-no-primeiro-trimestre-da-gestacao. Acesso em: 28 Mar. 2024