Há uma longa discussão na literatura nacional e internacional sobre a adequação da formação de médicos aos objetivos da política pública de saúde. Me proponho na presente tese, a refletir sobre os impasses na formação de psiquiatras e seu engajamento com as políticas públicas de saúde mental considerando o desalinhamento entre os interesses próprios ao ordenamento médico/ psiquiátrico/ farmacêutico que incidem na formação tradicional desses profissionais e os objetivos das políticas públicas em saúde mental orientados pela reforma psiquiátrica. A identidade do médico passou por diversas mudanças no último século, com o declínio de uma prática liberal da medicina e a incorporação do médico em sistemas de saúde (públicos ou privados) caracterizados pela grande incorporação tecnológica e desumanização das práticas. Desde a década de 1950 a psiquiatria passa por uma inflexão no sentido da compreensão do adoecimento mental em nível molecular, privilegiando o tratamento com psicofármacos em detrimento dos tratamentos que privilegiam a relação médico-paciente ou instituição-paciente, em sincronia com a incorporação tecnológica que ocorreu nas diversas especialidades médicas. A “revolução psicofarmacológica” e a construção de “consensos” da comunidade psiquiátrica em relação aos critérios diagnósticos dos transtornos mentais, representado por manuais diagnósticos como o DSM e a CID, puderam restituir ao psiquiatra a identidade de especialista médico. O psiquiatra, mesmo não possuindo marcadores biológicos para sua “doença”, passou a contar com drogas “efetivas” em seu arsenal terapêutico e um sistema diagnóstico supostamente válido e confiável. A crítica da reforma psiquiátrica a uma prática médico-centrada culminou em políticas que fortaleceram a implementação de equipes multidisciplinares em uma rede de serviços comunitários territorializados (a Rede de Atenção Psicossocial - RAPS). Essa crítica fundamentou-se mais no questionamento da centralidade do hospital psiquiátrico no tratamento e menos na crítica do estatuto de doença conferido ao sofrimento mental pelo modelo biomédico. Com a priorização na política de saúde mental da implementação da RAPS houve uma diluição do poder concentrado no médico psiquiatra, desestabilizando a identidade desse médico como “chefe do hospital”, reforçando entre os psiquiatras a identificação como “especialistas da doença mental”. Por outro lado, a abertura do SUS a práticas orientadas pelos conceitos de Clínica Ampliada, apontam um outro caminho no sentido da elaboração dos impasses estruturantes do mal estar no trabalho médico, recuperando ideais de cuidado e valorização da relação médico-paciente presentes na profissão desde sua origem. Na tese elaborei, junto a um grupo de psiquiatras engajados na construção da política pública em saúde mental, os desafios para a criação de arranjos envolvendo a integração do psiquiatra a RAPS desde uma perspectiva que não seja a da clínica degradada. Defendo que uma verdadeira abertura ao Cuidado e a Clínica Ampliada passa necessariamente pela desestabilização da ideologia biomédica que, sustentando a identidade do psiquiatra como médico especialista hegemoniza o Campo da Saúde Mental e pauta também a prática dos demais profissionais das equipes multiprofissionais. Nesse contexto, a crítica aos processos formativos em psiquiatria deve incluir a crítica da naturalização da classificação diagnóstica e da medicalização do sofrimento associada a essa naturalização que fazem desaparecer a dimensão clínica e psicossocial da prática do psiquiatra, o que nos convoca a recolocar a centralidade da escuta e da tradição crítica na formação de psiquiatras em coletivos e redes.