Microbiota

A metformina é o antidiabético oral mais utilizado no mundo. Apesar de décadas de sucesso no uso clínico para o tratamento do DM2, os mecanismos de ação da metformina permanecem pouco compreendidos. A metformina reduz a produção hepática de glicose em até 75% em pacientes com DM2. O primeiro mecanismo identificado para a supressão aguda da neoglicogênese hepática, em meados dos anos 50, foi a inibição do complexo I da cadeia respiratória mitocondrial (NADH: ubiquinona oxiredutase), que indiretamente ativa a quinase ativada por AMP (AMPK) através de uma diminuição da carga energética intracelular (aumento na relação [AMP]:[ADP] e/ou [ADP]:[ATP]. Posteriormente, descobriu-se que a ativação da AMPK pode decorrer também por um mecanismo direto, através de sua enzima precursora, LKB1, levando ambas as vias, direta e indireta, à redução da transcrição de genes com efeitos lipogênicos e à inibição direta de enzimas-chave para o processo, como a fosfoenol-piruvato-carboxiquinase e frutose- 1,6-bifosfatase e glicose-6-fosfatase.  Nesse contexto, estudos celulares com altas concentrações de metformina mostrando redução substancial da neoglicogênese e de ATP intracelular são agora repensados quanto à sua relevância, uma vez que na terapia antidiabética, a concentração plasmática da droga encontra-se em níveis micromolares, além de não ser observada substancial diminuição nos níveis celulares de ATP.

Considerando o papel fundamental do trato gastrointestinal na homeostase glicêmica e as ações pleiotrópicas da metformina em vários de seus órgãos, atualmente o intestino tem tido papel de destaque nesse contexto, representando tão importante sítio de ação quanto o fígado no manejo do DM2. Sabe-se que a metformina se acumula no intestino em concentrações até 10 vezes maiores que no fígado, e ainda, na mucosa do intestino delgado esse acúmulo é até 300 vezes maior. A importância das ações gastrointestinais da metformina é refletida também pelo fato de que a redução da glicemia é substancialmente maior após sua administração oral do que intravenosa, apesar de ambas as vias atingirem concentrações plasmáticas comparáveis.   Este conceito é apoiado pela observação de que o tratamento de 12 semanas com metformina de liberação lenta, com uma biodisponibilidade sistêmica muito menor e, portanto, maior exposição no intestino distal do que a metformina de liberação imediata e prolongada, resulta em uma melhora mais importante na glicemia de jejum do que outras formulações que promovem níveis séricos maiores. Além disso, o controle glicêmico mais eficaz com liberação tardia da metformina em pacientes com diabetes tipo 2 foi associado ao aumento da secreção de GLP-1 em jejum e pós-prandial, bem como do peptídeo YY, de função anorexigênica.

Muitos estudos têm avaliado o efeito da metformina na absorção intestinal de glicose. Enquanto a metformina in vitro pode reduzir a produção de ATP pelos enterócitos, levando à redução da atividade de cotrasnportadores de glicose dependentes de sódio tipo 1 (SGLT1), há um aumento na expressão de GLUT2 na borda em escova do jejuno de ratos, através da ativação de AMPK. Também em ratos, a administração in vivo de metformina em dose terapêutica (125 mg/Kg, duas vezes ao dia) por três dias foi associada ao aumento de SGLT1 no duodeno e jejuno e GLUT5 apenas no jejuno, mas não de GLUT2 ao longo do intestino delgado. Por outro lado, em pacientes com DM2, a administração de metformina (850 mg duas vezes ao dia) por 4 ou 7 dias diminuiu modestamente a absorção de glicose no intestino delgado, embora ainda não esteja claro se esse efeito está relacionado à atividade ou expressão reduzidas de transportadores de membrana.

Assim, em diabéticos tipo 2, a metformina demonstrou aumentar, no intestino grosso e, em menor grau, no delgado, a captação vascular do radiofármaco 18F- fluordeoxiglicose (18F-FDG), um análogo radioativo de glicose administrado intravenosamente em exames de PET/CT para imagens funcionais de órgãos e tecidos. Por ocorrer a partir do vaso para o enterócito, essa captação de glicose é denominada reversa. O aumento da captação reversa de 18F-FDG induzido pela metformina indica uma atividade metabólica mais intensa nos enterócitos e, embora seja um fenômeno conhecido há décadas em Medicina Nuclear, até hoje nenhuma justificativa para o fenômeno foi fornecida com convicção.

Além dessas ações na captação reversa de glicose, a metformina também modula a microbiota intestinal. Em camundongos alimentados com dieta hiperlipídica, a metformina demonstrou induzir profunda alteração no perfil microbiano fecal. Entre 29 gêneros identificados, a abundância de Akkermansia foi significativamente aumentada, assim como o número de células caliciformes, que produzem muco, utilizado como fonte de energia para aquele gênero bacteriano. A administração oral de Akkermansia muciniphila nos animais controles melhorou a tolerância à glicose e atenuou a inflamação do tecido adiposo, enquanto o tratamento com antibióticos anulou a redução da glicemia provocada pela metformina. Além disso, um aumento de Escherichia spp associado também à metformina em pacientes com DM2 favoreceu a produção de ácidos graxos de cadeia curta para diminuir a glicemia. Coletivamente, essas observações estabelecem um conceito adicional de que esta droga pode também exercer efeitos metabólicos benéficos pela interação com a microbiota intestinal e é o único medicamento antidiabético até agora reconhecido a ter essa capacidade. Resta esclarecer como a mudança da microbiota intestinal contribui para a ação da metformina, bem como o real significado e magnitude dessa ação em humanos.

Autor: Natália N. Tobar