Caso Jhony

     Para iniciarmos a nossa conversa e ilustrarmos a maneira como o nosso grupo entende o Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade  (TDAH), escrevemos um caso clínico fictício do menino Jhony. Este caso pode ser fictício mas representa a realidade de muitas crianças brasileiras, fazendo com que seja possível que exista um caso semelhante entre conhecidos e até familiares. Posteriormente, discutiremos algumas políticas sobre o assunto, sempre relembrando o caso relatado a seguir:      

      Acompanhado da avó Dona Lurdes, é levado ao Centro de Saúde na tentativa de um atendimento médico ou psicológico. A família está preocupada com seu desenvolvimento escolar. Jhonny tem 9 anos, frequenta a 4ª série do ensino fundamental, ainda não consegue ler, só escreve quando alguém lhe soletra letra por letra de cada palavra e também não consegue realizar operações matemáticas simples. Avó traz uma carta da escola, que também está preocupada com a situação, e além de escrever as dificuldades escolares, relata:

     "Jhonny tem muita dificuldade para acompanhar as atividades propostas em sala de aula. Não presta atenção, não consegue se concentrar, dispersa com facilidade e tenta desviar a atenção dos colegas que sentam próximos a ele com suas brincadeiras. Quando chamado à atenção fica agressivo, responde à professora e, muitas vezes, acaba provocando colegas, chegando a agredi-los fisicamente. O aluno procura chamar a atenção o tempo todo para ele. Suas respostas e participações em sala são sempre inadequadas e descontextualizadas. Sempre se opõe a tudo o que é proposto pela professora e pelos colegas. Nunca termina as tarefas propostas, não aceita atividades de recuperação diferenciadas colegas e atrapalha os demais em suas atividades. Solicitamos avaliação neuropsiquiátrica de seu transtorno para o devido tratamento.”

Assinado: Professora e Coordenadora da Escola

       A recepção da unidade agenda consulta com o médico pediatra, que ocorre 15 dias após o acolhimento. Na primeira consulta, inicialmente, o pediatra ouve Jhonny e complementa informações iniciais da história clínica com a avó. O menino conta que não gosta de estudar, que a escola é muito “chata”. Para ele,as professoras não gostam dele e não o permitem que participe das atividades propostas para o restante da sala. Tem apenas um coleguinha que gosta dele na sala, a maioria das outras crianças gosta de provocá-lo e o chamam de “burro”. A avó diz que a mãe trabalha todos os dias e que é frequentemente chamada na escola e sente que lá Jhonny é considerado culpado por tudo.Tem dificuldade para relatar o desenvolvimento neuropsicomotor do neto. Solicitado que a mãe compareça no próximo atendimento.

       No segundo atendimento com o mesmo pediatra, a mãe comparece e descreve todo desenvolvimento de Jhonny desde seu nascimento. Relata que o pai abandonou a família quando o filho tinha 4 meses de vida e de lá para cá é ela que mantém a casa e assume toda responsabilidade pelo desenvolvimento do filho. As dificuldades de aprendizado de Jhonny são surpresa para ela que sempre julgou o filho inteligente e que só quando começou a frequentar oensino fundamental começou a ter dificuldades. Relata que o filho tem mudado de comportamento e que está cada vez mais agressivo com ela. Diz não ter condições de acompanha-lo em outros atendimentos, devido a dificuldade de liberação em seu emprego. Diz também que gostaria que Jhonny tomasse algum medicamento para controlar sua agressividade e impulsividade. Ao final do atendimento é proposto uma sequência de retornos e convite para que frequentem o grupo de orientação e acompanhamento das queixas escolares para os pais e cuidadores e para as crianças e adolescentes.

      Tanto a mãe como Jhonny passam a frequentar o grupo, com maior frequência do menino acompanhado de sua avó, e a mãe sempre que possível. Jhonny continua em atendimentos com o pediatra. Nestes atendimentos pouco a pouco pôde-secompreender o processo de desenvolvimento neuropsicomotor e a dinâmica de relações familiares do menino. Foram propostos desenhos da família e pôde-se identificar sua dificuldade em expressar algo sobre sua origem paterna. Num dos atendimentos, o pediatra pergunta se ele gostaria de desenhar como imaginava seu pai. Jhonny fica alguns segundos com o lápis pressionado sobre o papel, até que a ponta se quebra... Neste instante, revela que sabe que o pai não está morto e sim preso. Esta informação causa surpresa ao médico que, em atendimento com a mãe, checa a veracidade desta versão da história. A mãe confirma também com surpresa, pois até então sempre contara ao filho uma versão em que o pai teria falecido. Demonstra muito medo que o filho queira conhecê-lo como também teme que o filho, muito impulsivo como é, siga o mesmo caminho do pai. Este tema reaparece em outros atendimentos, mas vai perdendo sua dimensão com o tempo, na medida em que mãe e filho vão lidando com medos e ocultações.