A história da política nacional de saúde mental tem estreita relação com os movimentos sociais e de luta em prol da redemocratização do país, como o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e o Movimento Negro. Compreende-se que o sofrimento psíquico se constitui a partir das configurações sociais vigentes. A partir dessa proposição, é imprescindível uma escuta psicanalítica que considere a dimensão sócio-política do sofrimento, a qual se contrapõe a uma lógica totalitária de domínio colonial. Diante dessa perspectiva, questiona-se: como a psicanálise pode estar presente em discussões que articulam a saúde mental com as relações étnico-raciais e de gênero? Um dos principais expoentes da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Mas, afinal, quem são os usuários dos CAPS? Como narram seu sofrimento? O presente trabalho objetiva, a partir de uma perspectiva psicanalítica, problematizar os diagnósticos de usuários de um CAPS I Adulto, de uma cidade do interior de São Paulo, a partir da discussão dos marcadores sociais de raça e gênero. Trata-se de uma pesquisa quantitativa e qualitativa, com coleta de dados em prontuários e entrevistas semiestruturadas. Foram analisados 346 prontuários e cinco pessoas foram entrevistadas. A respeito do gênero, 210 são usuárias do gênero feminino (61 ) e 136 são usuários do gênero masculino (39 ). Concernente à raça, entre as mulheres, 53 são brancas, 36 são pretas, 6 são pardas e em 5 dos prontuários não havia essa informação. Já entre os homens, 45 são pretos, 39 são brancos, 12 são pardos e em 5 dos prontuários não havia essa informação. O diagnóstico de esquizofrenia é o mais prevalente, independentemente da raça e do gênero. Todavia, o segundo diagnóstico mais prevalente entre as mulheres, independentemente da raça, foi o de depressão. Entre os homens, também independentemente da raça, o segundo diagnóstico mais prevalente foi o diagnóstico de transtorno mental devido ao uso de múltiplas drogas. Nas entrevistas realizadas, a partir da análise das temáticas levantadas, os participantes desvelam a dimensão sócio-política, colocando em relevo as desigualdades regionais, raciais e de gênero, o preconceito linguístico e cultural, questões trabalhistas, em um contexto de vulnerabilidade social e a dimensão do desmonte e precarização do SUS. Discutir a respeito da escuta psicanalítica em espaços públicos, com base em uma dimensão interseccional e antimanicolonial, é urgente e demanda mais pesquisas. Deve-se considerar também o contexto de desmonte da Política de Saúde Mental, o qual obedece a uma lógica neoliberal. A psicanálise brasileira tem sido provocada a realizar uma nova virada epistemológica, assim como aquela que fundamentou seus primórdios. Debater os estudos acerca das relações raciais e de gênero, nos quais o homem branco supostamente universal também seja implicado, propicia à psicanálise novas formas de compreensão acerca do sofrimento psíquico, na tentativa de não invisibilizar, novamente, questões importantes aos processos de subjetivação e que se refletem no sofrimento psíquico.