Luis Sérgio Leonardi

A história do gastrocirurgião Luís Sérgio Leonardi, atual coordenador do Gastrocentro, confunde-se com a história do HC e da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Cirurgião de renome internacional, Leonardi encabeçou importantes iniciativas para a formação de alguns serviços na área de saúde da Universidade. O especialista fundou, em 1986, o Pronto-Socorro (PS) do HC, uma potência no atendimento a mais de 10 mil pacientes por mês. Nesta entrevista, ele aborda o surgimento do hospital universitário, a criação do PS e a sua visão sobre o ideal no atendimento a pacientes. De acordo com Leonardi, a concepção de um hospital universitário é uma idéia consensual entre os professores universitários. "É um hospital que possa desenvolver atividade assistencial, ligada ao processo de ensino-aprendizado, com cursos de graduação, residência médica, pós-graduação e também aperfeiçoamento e progressão acadêmica dos docentes. Leonardi está na Unicamp desde 1968.

Quando vim para cá, a Unicamp era um belíssimo canavial. Até então, eu trabalhava na Santa Casa de Campinas. Já aqui, em 1985, de certa forma procuramos colaborar para a construção deste hospital, o HC.

Um hospital universitário, desenhado para acolher o ensino de medicina, naturalmente deveria ser planejado e organizado de forma a acolher aquelas áreas de atenção à saúde necessárias para um bom ensino médico. Mas o bom ensino médico necessariamente passa, dentre outras coisas, por um bom hospital. Isso me parece muito claro. Evidentemente que um bom hospital, para dar um bom ensino, vai "do zero ao infinito", ou seja, teríamos a possibilidade de ter o hospital pouco avançado, pouco evoluído, com pouca tecnologia ou o hospital com muita tecnologia e muito avançado. Isso depende dos padrões ou estamentos mais graduados do governo. É a qualidade esperada para a universidade.

Hospital universitário de bom padrão para um ensino não precisa fazer transplante de órgãos, coisa que este hospital faz. Um bom hospital universitário não precisa ter um bom serviço de genética humana, como este hospital tem. É um hospital diferenciado. Tem um conceito amplo. Meu desejo é transmitir que este padrão de qualidade que o hospital universitário precisa ter é o de um hospital que responda bem às demandas da sociedade em que está inserido e pretende atender.

Se este hospital, por exemplo, estivesse em Rondônia ou no norte do Mato Grosso, as pretensões e propostas dele seriam para um tipo de medicina mais primária, de acordo com as necessidades ambientais. A meu ver, um ponto-de-vista muito importante é que um hospital universitário precisa e deve estar inserido na área social onde atua. É uma idéia muito pessoal e este hospital universitário, assim idealizado, deve ter uma ampla gama de possibilidades de atendimento, desde o mais elementar até o mais complexo, que é o terciário ou o quaternário.

Um hospital universitário tem que ser desenhado assim. Então a pergunta que se impõe: nós teríamos que ter aqui um "monstrengo" de hospital? Não. Por quê? Porque um hospital universitário assim desenhado deve estar articulado com os hospitais da comunidade. Isso o Brasil ainda não aprendeu. Agora está sendo ensaiada uma tentativa promissora. Trata-se desses hospitais recentemente construídos pelo governo do Estado de São Paulo e mantidos por organizações sociais, alguns deles em convênios com universidades. Tanto é assim que aqui na Unicamp estamos em convênio com o Hospital de Sumaré, uma instituição moderna, bonita, charmosa, bem equipada. Ele faz um tipo de medicina que se enquadraria como de nível secundário e, quem sabe, com todas as prerrogativas para ser um hospital terciário.

Para nós da Unicamp, devemos raciocinar que temos dois hospitais universitários. Seriam 400 leitos aqui e uns 200 lá. O nosso parque hospitalar cresceu. Porém, não basta. Para mim, a idéia da questão universitária, como dissemos, está inserida no contexto da sociedade onde atua. Assim sendo, o hospital municipal público "Mário Gatti" poderia estar perfeitamente articulado conosco, pelo menos em transplantes de órgãos, que é a minha área - transplante de fígado. Mas este intercâmbio poderia ser mais elaborado.

Por outro lado, existe também a medicina primária, com os postos de saúde. A Unicamp tem uma excelente articulação com a rede básica da Prefeitura de Campinas. Não entendo o hospital universitário como um monstrengo pintado de branco, onde só se opera coração, só se opera cabeça, só se faz transplante. Aí estaríamos tratando de hospital especializado, mas, para o ensino de graduação, residência e pós-graduação, ele deixaria a desejar. Seria muito útil que este hospital tratasse bem do coração e também de alguma patologia mais complexa.

O Incor, em São Paulo, é o hospital mais "festejado" do Brasil. É muito bem equipado e com muita qualificação profissional. Sua proposta é operar, tratar coração, mas é o hospital que mais opera cirurgia digestiva em São Paulo, e quem sabe no Brasil. É que falta hospital de cirurgia digestiva. O Incor é tão bom que ele, além de exercitar com perfeição incrível a área de tratamento das doenças do coração, avança num terreno até onde não seria sua especialidade, suprindo falhas dos outros.

Inserção do Hospital na FCM - Os hospitais do Estado (o das Clínicas de São Paulo, o das Clínicas de Ribeirão Preto e de Botucatu) são subordinados à Secretaria de Saúde de São Paulo. Nesse caso, eu diria que o reitor desses hospitais é o secretário de saúde de São Paulo. Na Unicamp, infelizmente, este hospital, na época de sua implantação, contra o meu voto, mas para atender decisões políticas do reitor da ocasião, ficou subordinado ao Gabinete do Reitor.

Esse relacionamento nem sempre representa maior afinidade. Nem sempre a comunidade médica da Unicamp e o reitor falam a mesma língua, por melhor que seja. É fácil compreender e também muito justo o que quero dizer: não se deve culpar os reitores. Os momentos são diferentes. As políticas, em nível estadual, federal, variam muito. As crises econômicas que assolam o País são quase que diárias. Deste modo, creio que houve falha da Universidade não corrigida pelo menos em 20 anos, falha em definir claramente que este hospital deveria ficar subordinado à Secretaria de Saúde, onde poderíamos ter um melhor suporte de tratamento e compreensão das necessidades. E mais que isso: não estaríamos sendo onerosos aos cofres da Unicamp.

O hospital universitário, no caso presente, tem um excelente corpo clínico, que é exatamente o corpo clínico da Faculdade de Medicina. É o vínculo entre a FCM e o Hospital. O "campus" de atuação da FCM é o Hospital das Clínicas, o que se constitui um corolário da minha manifestação inicial, de que o ensino precisa de um bom hospital e de bons professores, além de uma estrutura administrativa que atue nesta interação. Quando digo estrutura administrativa, é algo complexo. Exemplifico com a Divisão de Enfermagem. Ela é sempre presente e importante em tudo. A equipe de atenção à saúde não deve ser enaltecida somente pela figura do médico, que é um dos elementos desta atenção. Mencionei enfermeiros e menciono psicólogos, biólogos, bioquímicos e assistentes sociais, etc. Existe aí um elenco que caracteriza a interdisciplinaridade. Sou favorável à sistemática.

Essa inter ou multidisciplinaridade, como dizia, era uma estrutura piramidal. Este termo pode até causar estranheza nessa época de modernidade no Brasil. Eu diria que deveria ser uma multidisciplinaridade muito bem entrelaçada, em que o médico fosse um dos elementos a compor toda esta equipe.

Acho também que o hospital universitário deve se apresentar como um local agradável para as pessoas, não como uma masmorra do tempo passado, como uma prisão, um lugar de tédio. Deve ser uma coisa que enseja até algum tipo de participação cultural, de humanização. Uma pessoa que vem aqui para o hospital, ela vem com dor, sofrendo. Precisa ser minimamente bem tratada. A tecnologia no hospital universitário tem que ser domesticada porque, caso contrário, vamos até ferir princípios da bioética. Vamos entender que o hospital é só máquina, só aparelhos. Não é só isso. Estamos tratando de seres humanos e de mentes humanas. São pessoas que têm a sua religiosidade, suas crenças, o seu ego e o seu sentir. Não basta estar biologicamente curado. É necessário que o enfermo deixe de ter outras doenças que acompanham o ser biológico.

Expansão x ideal - Questiona-se muito o tamanho de um hospital universitário. O fundador desta Universidade, professor Zeferino Vaz, hoje em dia, poucos citam o seu nome. Na minha sala, tenho uma figura dele na parede. Zeferino dizia o seguinte: "o gigantismo é patológico". Tudo o que é muito grande, é difícil de administrar. Embora o futuro a Deus pertença, devemos pesquisar a "verdade verdadeira". Qualquer tipo de crescimento, dimensionamento de uma área de atenção à saúde, deve ser feito com planejamento, que também enseja a presença de experts nessa matéria.

Este hospital da Unicamp que está aí, há 20 anos, foi saudado como hospital de arquitetura mais moderna do País. Após viver nele 20 anos, observamos que tem defeitos estruturais. Se fôssemos fazer um novo hospital, veríamos que estes defeitos não teriam acontecido. Se comparado ao de Sumaré, este tem outro charme, uma outra forma, um outro conteúdo. Por quê? Assim se passaram 20 anos.

Devemos vislumbrar o futuro, mas devemos olhar para trás e ver a história da qual todos participamos, sobretudo os mais antigos na Universidade, como é o meu caso, para que erros não venham a acontecer. O doente que vem para o hospital universitário pode vir aqui com uma patologia corriqueira, uma gripe, um resfriado, um parto, uma apendicite, até com problemas mais complexos. Um hospital mais moderno precisa ter uma extensa área para atendimento ao doente externo e ao que procura o hospital para ser socorrido. Ninguém o pode proibir de ter acesso a um hospital público, onde todos são iguais perante a lei. Além disso, qualquer que seja a situação, é bom que este hospital universitário esteja agregado, que tenha junto de si, ou então esteja próximo, a um pronto-socorro. Do contrário, vamos apenas contemplar o atendimento àqueles doentes chamados "doentes hora marcada", que é uma grande parcela da população. Estaríamos excluindo os doentes com gravidade. Como estamos falando de hospital universitário, o ensino se faz tanto no doente crônico como no doente agudamente enfermo.

Pronto-Socorro - O nosso PS começou lá na Santa Casa por volta de 1969. Viemos para a Unicamp em 1985 com um know how do que era um PS. Muitos professores que hoje estão aqui, que atuam no PS deste hospital ou que são cirurgiões nos hospitais de Campinas, aprenderam cirurgia de urgência na Santa Casa. O PS da Santa Casa, o qual tive a honra de implantar, foi uma grande escola, dentro da precariedade do que foi aquela instituição durante os 20 anos que ficamos lá. É uma lembrança gostosa daqueles tempos de dedicação, pioneirismo, amor ao próximo e camaradagem entre os médicos.

O PS não começou do nada. Deram-me uma área que tinha uma dúzia de leitos (seis para homens e seis para mulheres) e me disseram: "você precisa organizar e tomar conta desse serviço de emergência". Assumi, mas deixando muito claro que eu não faria aquilo sozinho. Foi bem compartilhado. Eu era ainda jovem, mas existiam colegas mais novos, como o Raul Medeiros e o Mário Mantovani. Tinham ainda os meus contemporâneos, como o Ronan, que ficou no PS até pouco tempo. Ele é um crônico do pronto-socorro. Estas pessoas faziam parte do dia-a-dia daquela unidade de atendimento. Hoje, o PS cresceu muito. Por isso digo que um hospital universitário tem que ter uma porta e que o PS é a porta de entrada. É o cartão de visitas.

O que eu poderia propor no momento para a Unicamp? Uma área maior para ambulatório, anexa, em algum lugar. Terreno existe. O HC atende muitos pacientes por dia. Precisa haver vontade política. Faria uma área de consultório simples, padrão três estrelas, com economia. Faria uma melhor área de recepção de PS, porque atende uma região de 7,5 milhões de habitantes. Atende o sul de Minas. Atende vários pontos do território paulista.

"Uma pessoa que vem aqui para o hospital, ela vem com dor, sofrendo. Precisa ser minimamente bem tratada. A tecnologia no hospital universitário tem que ser domesticada porque, caso contrário, vamos até ferir princípios da bioética. Vamos entender que o hospital é só máquina, só aparelhos. Não é só isso. Estamos tratando de seres humanos e de mentes humanas. São pessoas que têm a sua religiosidade, suas crenças, o seu ego e o seu sentir. Não basta estarem biologicamente curadas. É necessário que deixem de ter outras doenças que acompanham o ser biológico."