Psiquiatra Maurício Knobel

O psiquiatra Maurício Knobel é o argentino mais brasileiro da FCM. O Doutor Knobel era professor da Universidade de Buenos Aires, mas a ditadura que assolava o país e o convite tentador do então reitor Zeferino Vaz, fizeram com que viesse para a Unicamp, em 1976. Foi contratado para reorganizar o Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas e tinha a pretensão de ficar no Brasil por aproximadamente dois anos, mas lecionou na Faculdade de Ciências Médicas por mais de dezesseis anos. Naturalizou-se brasileiro em 1985 e só interrompeu suas atividades quando teve sua aposentadoria compulsória por idade em 1992. Mesmo assim, permaneceu como Professor Titular Convidado de Clínica Psiquiátrica. Em 30 de março de 1993 recebeu o título de Professor Emérito, aprovado por unanimidade pelo Conselho Superior da Universidade, e entregue em solenidade especial pelo Magnífico Reitor Carlos Vogt. Em seu depoimento, o professor fala de sua relação com os vários diretores e reitores com quem conviveu, sobre a organização do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM e a respeito de sua chefia no Departamento. Recorda também sobre a criação do Serviço de Atendimento Psicológico e Psiquiátrico ao Estudante, ainda hoje um dos órgãos mais importantes de atenção aos discentes da Universidade Estadual de Campinas. Brilhante em toda a sua carreira como médico, pesquisador e professor deixa um breve, porém importante, ensinamento aos futuros colegas médicos: “O Juramento Hipocrático é um enorme peso que carregamos. Somos médicos porque queremos.”

“Vir para a FCM mudou minha vida radicalmente”

Foi uma situação muito especial e muito significativa na minha vida. Mudou minha vida radicalmente (sua vinda para a Faculdade de Ciências Médicas em 1976). Naquela época o reitor era o saudoso Zeferino Vaz (Ex- reitor da Unicamp na Gestão de 21.12.1966 a 15.4.1978), que me convidou a vir, porque existia uma vaga de Professor Titular de Psiquiatria. Era professor em Buenos Aires, mas em 1976 a situação na Argentina era de uma ditadura, feroz, brutal. A minha preocupação não era pessoal. Já tinha família, mulher, dois filhos e a nossa situação não era nada agradável. O reitor, em 1976, me convidou a vir a Campinas, falou sobre a Unicamp, que estava começando e fez uma proposta extremamente interessante, principalmente na situação em que se encontrava a Argentina. Vim sozinho e depois vieram minha mulher e meus filhos. No meu contrato estava estabelecido que eu seria contratado para reorganizar o Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas. Reorganizar, às vezes, é bem mais difícil que organizar.

Encontrei um Departamento que funcionava em um pedacinho de uma sede de uma entidade religiosa, Doutor Quirino. Encontrei um residente R1, um R3, dois ou três professores que nem sei como estavam lá. Fomos felizmente bem recebidos e atendidos. Os pedidos que fazia tanto ao diretor da Faculdade, que era o Doutor Pinotti (Professor Doutor José Aristodemo Pinotti, Reitor da Unicamp na Gestão de 19.4.1982 a 18.4.1986 e Diretor da FCM de 1971 a 1972 e de 1976 a 1980) na época, como ao reitor eram atendidos. Vim muito disposto a trabalhar e consegui reorganizar o Departamento. Fomos para a Santa Casa, onde também houve pequenas discussões a respeito do lugar onde seria a enfermaria de Psiquiatria. Os outros colegas diziam: “Mas vai ter psiquiatria no hospital? Mas um louco pode sair e matar alguém”. Por mais que procurasse explicar, “nós não vamos internar loucos no Hospital Geral, tenho experiência com isso. Vamos internar um depressivo que necessitava medicação e não tem para pagar. Vamos internar adolescentes que tenham problemas com drogas para tentar fazer uma reabilitação. Ou seja, é uma Faculdade de Medicina, temos que ensinar tudo isso. Vou tomar cuidado para que um sujeito perigoso não fique aqui e vá para um Hospital Psiquiátrico.” Combinamos e conseguimos. Naquela época era chefe, não por concurso, mas por designação.

Durante minha gestão no Departamento criamos várias coisas interessantes. Criamos um setor de Psiquiatria de Infância e outro setor para a Adolescência que depois se transformou em Centro de Atendimento ao Estudante da Unicamp. O Núcleo de Estudos de Psicologia (NEP) também foi criado por mim. Estimulamos a pesquisa em Psicologia em todas as áreas da Universidade. Chegamos a publicar três livros e vários artigos em diversas revistas científicas. O Centro de Atendimento ao Estudante foi criado para atender adolescentes. A demanda dos estudantes e dos amigos dos estudantes fez crescer este setor. Isso funcionou maravilhosamente bem e continua funcionando. Formou-se gente especializada em Psiquiatria e Psicologia da Adolescência, o atendimento aumentou muitíssimo. Foi muito bom. O Centro de Atendimento ao Estudante é uma das conquistas da Universidade. Conseguimos terminar uma enfermaria de quatro leitos na Santa Casa, com sentimento muito profundo. Foi um clima muito agradável com os colegas e especialmente os funcionários me ajudaram demais. Esforçaram-se para me ajudar. Foi meu momento de lua-de-mel com a Unicamp.

O Hospital das Clínicas ainda estava em construção e tinha que brigar um pouco com os colegas, porque o plano era criar a Enfermaria de Psiquiatria, para que aos alunos aprendessem não apenas na teoria e sim com o paciente. Aliás em todas as especialidades. Não foi fácil. Diziam: “Mas vai colocar Psiquiatria junto a Pediatria”. Eu dizia: “Primeiro, em psiquiatria os pacientes não são loucos, segundo, não andam caminhando por todo o corredor e é muito fácil colocar uma porta de segurança e não acontecer absolutamente nada.” Isso felizmente foi aceito pelos próprios reitores, os quais fui muito reconhecido. Pinotti, Leonardi (Prof. Dr. Luis Sérgio Leonardi, Diretor da Faculdade de Ciências Médicas de 1980 a 1984), Frederico (Prof. Dr. Antônio Frederico Novaes de Magalhães, Diretor da Faculdade de Ciências Médicas de 1984 a 1988), gente de muito valor que fui criando amizade e isso facilitava muito as coisas, porque ao invés de fazer um ofício, a gente conversava: “necessito que você conserte uma lâmpada” e eles: “tudo bem Maurício” e assinavam. A mesma coisa acontecia com o reitor Zeferino Vaz. Uma vez por semana tinha uma entrevista de 15 minutos, conversávamos um pouco e ele chamava o secretário, que era o Doutor Camargo e dizia: “Designa-se”. Era muito gostoso trabalhar assim.

O Centro de Prevenção ao Suicídio nasce no Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas. Ele funcionava na base do voluntariado. Os voluntários que lidavam com pessoas que ameaçavam com o suicídio tinham que estar treinados e sempre expliquei, assim como na Psiquiatria, que o objetivo de quem entrevista este indivíduo é conseguir o seu retorno. “Vamos trabalhar com o interesse pela vida”. 
Falo para os residentes na Psiquiatria: Quando você atende uma pessoa que mostra não ter interesse, que diz “não tenho nada, não sou louco”, o objetivo de vocês não é dar um tratamento. O objetivo primeiro é conseguir que ele volte pelo menos uma segunda vez. Aí aparece a motivação. O Centro se desenvolveu tanto que se formou uma comissão independente. Funcionou e funciona até hoje com bastante sucesso.

Ainda na Argentina me especializei em Psiquiatria Infantil. Organizei o primeiro Congresso Latino Americano nesta área e aí surgiu a Associação Brasileira de Psiquiatria Infantil. O trabalho envolvendo Psiquiatria Infantil é muito interessante porque cada vez vamos aprofundando mais e mais, especialmente, como agora, se iniciou uma união com os neurologistas e os geneticistas. Isto é uma realização que posso considerar como importantíssima para nós. E agora temos um ambulatório de Psiquiatria Infantil.Meu sonho é que a Unicamp possa sustentar ou criar um Hospital de Psiquiatria Infantil.

A minha relação com os reitores foi muito boa. Começou com Zeferino Vaz e realmente ele facilitou muito. O Professor Pinotti quando era diretor da Faculdade, dizia, quando eu queria algo: “Maurício você que tem bom relacionamento com o reitor, porque não fala diretamente que será mais fácil”. Com o Professor Leonardi que era uma pessoa aparentemente mais severa, foi uma relação muito boa. Até ficamos com uma simpatia, acho que, mútua. O que nunca vou esquecer: o Professor Leonardi, tinha família em Araras e um dia me convidou a comer na casa dele. Aceitei e a mãe do Leonardi preparou Raviolada, que é um prato tipicamente argentino. Esse gesto do diretor da Faculdade, era dentro da personalidade do Leonardi, muito generoso e apreciei muitíssimo. Eu e o Professor Frederico Magalhães ficamos muito amigos também. Orientamos pessoas que trabalhavam com ele e com o Magna (Prof. Dr. Luis Alberto Magna, Diretor da Faculdade de Ciências Médicas de 1990 a 1994) também. Com todos os diretores de Faculdade e reitores, inclusive agora com o Brito (Prof. Dr. Carlos Henrique de Brito Cruz, atual reitor da Unicamp) temos um relacionamento muito cordial. Esse é um aspecto que considero de muito valor.

Em 1985 saiu um decreto dizendo que para continuar como professor, teria que prestar concurso e para prestá-lo tinha que ser brasileiro. Resolvi isso, me naturalizando. Pensei que viria para o Brasil por um ano ou dois, assim que a ditadura na Argentina chegasse ao fim, só que em 1985 ainda estava aqui. Imaginem como estava a situação na Argentina: Cheguei no Brasil na época do presidente Ernesto Geisel e nem percebi que estava em outra ditadura. Optei como estrangeiro, em não me meter em política e me dedicar a minha função.

Minha mensagem, tanto aos colegas quanto aos alunos, à distância da minha idade, já como professor aposentado, seria que procurem resolver os conflitos que surgem e vão surgir permanentemente nos caminhos da Universidade. No bloco operário sou a favor das greves pois elas são o único instrumento para reivindicar e fazer valer suas reivindicações. Isso é um direito absoluto. Quanto a docentes e alunos, eles têm que pensar que são médicos e estão formando como médicos. Um mês de greve significa um mês de não aprender. Que nenhum aluno ou colega pense que está atendendo um paciente de graça. Isso não é verdade, pois o paciente que vem ser atendido aqui nos nossos hospitais é um paciente que merece atenção. Que o Estado se dedique, criando mais hospitais e liberando um orçamento maior para a saúde. E que deixem de fazer obras faraônicas e façam obras de infra-estrutura na área de saúde. O Juramento Hipocrático é um enorme peso que carregamos. Somos médicos porque queremos.

Entrevista concedida a Eduardo Vella