TDAH e outros conceitos

Segundo a DSM IV-TR, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é um padrão persistente e severo de desatenção, hiperatividade e impulsividade, com sintomas que se manifestam antes dos 7 anos e que provocam prejuízo ao desenvolvimento infantil e ao funcionamento social, acadêmico ou ocupacional, manifesto em, pelo menos, dois contextos diferentes, por exemplo, em casa, na escola ou em situações especiais. 

No livro Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade: Manual para Diagnóstico e Tratamento de Russel A. Barkley (Editora Artmed - 2008), ao definir os sintomas de pacientes com TDAH,  ressalta que esses sintomas devem ser entendidos como "diferenças de comportamento" e são definidos como patológicos pela comparação com as "crianças saudáveis". Fazendo-nos pensar na subjetividade desses sintomas e desse diagnóstico, que será discutido nas próximas páginas.

O diagnóstico do TDAH é clínico e é realizado através de critérios diagnósticos estabelecidos na quarta edição do DSM e sua versão revisada. A definição do DSM é semelhante, embora não idêntica ao dos CID-10. 

Os critérios do DSM-IV estipulam que os indivíduos devem ter apresentado sintomas de TDAH por pelo menos 6 meses, que esses sintomas devem ocorrer em um grau que represente inadequação ao nível de desenvolvimento, e que os sintomas que produzem comprometimento devem ter se desenvolvido até a idade de 7 anos. A partir da lista de itens de desatenção, seis dos nove itens devem ser identificados como inadequados para o nível de desenvolvimento. A partir das listas de impulsividade e hiperatividade combinada, seis dos nove itens devem ser considerdos inadequados.

Após ler esses critérios diagnósticos, muitos já se consideraram com TDAH ou descobriram essa doença em seus filhos ou sobrinhos, mas calma. Todo mundo já se comportou dessa maneira algum dia, então todos nós somos portadores de TDAH? Obviamente não.  

Precisamos analisar criticamente esses dados para tirarmos nossas próprias conclusões sobre esse transtorno, assim como em todas as doenças existentes. Sabe-se muito poucos sobre os efeitos a longo prazo dos rótulos que se instalam e as dificuldades que se instauram. Dar nome a alguma patologia não é nunca trivial, implica em tratamento diário, seja ele medacamentoso ou não, estabelecem-se obstáculos, limites. 

O primeiro ponto é que os ditos "sintomas" desse transtornos são características da natureza humana, todo indivíduo é, em diferentes graus, desatento, desorganizado, impulsivo, principalmente uma criança. Portanto, fazer um diagnóstico de doença baseado apenas na presença dessas características "em demasia" e na comparação com crianças "saudáveis" é extremamente subjetivo. Até que ponto esse comportamento passa a ser patológico?

O autor do livro citado diz que é quando esses sintomas tornam-se inadequados para a idade ou nível de desenvolvimento. Mas dessa constatação surge outra pergunta importante: podemos culpar apenas esses sintomas pela desigualdade do nível de desenvolvimento apresentado pelo portador?

Muitos autores renomados dizem que esse comportamento problemático é definido pela genética e uma vez que ele manifeste-se traz os prejuízos para o nível de desenvolvimento da criança. Entretanto existe uma outra corrente que diz que os sintomas são a manifestação final, o produto de um ambiente que compromete o desenvolvimento da criança, portanto, não adiantaria tratar esses sintomas.

Mas o que existe no ambiente que possa comprometer o desenvolvimento de uma criança e levá-la a ficar desatenta, impulsiva e agressiva? A resposta é: muita coisa.

Olhando a sociedade e a forma que ela mudou durante esses anos. A sociedade contemporânea busca a todo momento conquistar progresso e lucro, para isso, são necessárias pessoas eficientes e produtivas, qualquer pessoa que se desvie desses atributos ou são excluídas do processo ou passam por um processo de homogeneização, que no caso das pseudo-doenças, como o TDAH, é a medicalização. Pais e professores cobram das crianças resultados e os esperam com perfeição, uma criança com os sintomas do TDAH não consegue produzir dessa forma, sendo levada ao médico. 

Outro processo crescente das sociedades ocidentais é o de "biologização da vida", em que questões sociais, políticas e coletivas são transformadas em questões individuais e biológicas, igualando o mundo da vida ao mundo da natureza, em que se obedecem as leis naturais, isentando de responsabilidade todas as instâncias de poder e desconstruindo os direitos humanos. Na medicalização, esse processo ocorre com as questões sociais transformando-se em problemas de origem e solução no campo médico. Isso é possível pela ampliação e extensão do poder desse campo, que pode transformar “dores da vida em doenças”.

Em outras palavras, o campo médico busca encontrar alterações no substrato biológico dos seres humanos (nas sinapses, nos neurotransmissores, morfologia cerebral, enfim...) explicação para diferenças individuais e desigualdades sociais.

“Medicalizar significa definir, em termos médicos, problemas sociais e buscar em sua origem na biologia. Significa também acreditar que o saber médico poderá levar ao domínio da morte e que a frequência das curas está diretamente ligada à intensidade do ato médico. O processo de medicalização individualiza problemas coletivos, biologizando e naturalizando-os."
 
(Moysés e Collares, 2007)

 

São muitos os problemas coletivos e individuais que levam uma criança a manifestar os sintomas do TDAH, aqui discutirei alguns deles.  

Hoje em dia, as crianças vivem na era digital em que as relações interpessoais são substituídas por uma relação com a tela de um computador e televisão ou, pior ainda, um tablet ou celular que acompanha a criança pra onde ela vai. Essa criança que recebe estímulos visuais e auditivos intensos o dia todo e toda hora é normal que ao sentar para ler um livro preto e branco da escola não consiga e apresente os sintomas de desatenção. 

Outro problema dessa nova atividade infantil é o conteúdo do que é assitido, os conteúdos da televisão e dos video games e aplicativos são conteúdos de fácil assimilação, não exigem raciocínio de quem está assistindo e são muitas vezes violentos. Por isso, novamente, a criança é colocada para ler um livro de matemática e fica com preguiça de raciocinar, já que no dia-a-dia, fora da aula, ela não está acostumada a isso.

Se for uma criança que assiste desenhos de luta e afins reproduzirá o comportamento transmitido pelo programa na escola e em casa, sendo tachado como agressivo e impulsivo.

Um terceiro problema analisado é o isolamento social e o sedentarismo que essa atividade resulta. Essas crianças muitas vezes têm dificuldade de relacionar-se com as outras e não gastam a energia que todas as crianças têm de sobra. A escola torna-se o único local em que a criança tem para conviver com outras e poder extravasar a energia acumulada, resultando em uma criança que não para na carteira, corre sem parar e fala durante a aula.                         

 Imagem internet

A escola da realidade brasileira colabora com a apresentação desses sintomas por parte das crianças. Esse modelo escolar é o mesmo da época dos nossos avós em que nada do que foi descrito anteriormente existia, o modelo lousa de giz de cera e de aulas expositivas onde apenas o professor fala não atinge mais as crianças da atualidade que recebem toneladas de estímulos em apenas meia hora de televisão. Por isso, é crescente o número de crianças que não consegue prestar atenção nas aulas, recebendo o diagnóstico de TDAH por isso.

Outro problema das escolas atualmente, este surgiu nos tempos atuais, Sousa (1995) aponta como “os alunos não discutem o que estão aprendendo, se estão aprendendo, o sentido do que estão aprendendo, mas que nota tiraram e em que disciplina estão com ou sem ‘média’”. Esse sistema educacional visa o disciplinamento de seus alunos e preocupa-se apenas em cobrar resultados. Além disso, expõe os alunos com os "melhores" resultados e com os "piores" resultados, os primeiros são valorizados e os segundos condenados e estigmatizados.

Nas escolas públicas brasileiras, além desse modelo ser vigente, observamos uma realidade pior, não há incentivo para o professor com materiais de trabalho diferentes, o espaço físico muitas vezes é precário, sem contar a baixa remuneração desses profissionais. Tudo contribui para uma escola desinteressante à criança que manifesta todos os sintomas possíveis de desinteresse.

Em relação aos problemas individuais, o principal entre eles é o ambiente familiar em que a criança está inserida.

"O grupo familiar tem um papel fundamental na constituição dos indivíduos, sendo importante na determinação e na organização da personalidade, além de influenciar significativamente no comportamento individual através das ações e medidas educativas tomadas no âmbito familiar (Drummond & Drummond Filho, 1998). Pode-se dizer, assim, que esta instituição é responsável pelo processo de socialização primária das crianças e dos adolescentes (Schenker & Minayo, 2003)."

(Pratta e Santos)

Este mesmos autores discutiram a mudança do padrão familiar em que as mulheres estão assumindo o papel de prover a casa e trabalham fora. Isso resulta em crianças que ficam sem a companhia dos pais durante o dia, muitas vezes sozinhos, na escola ou com outros familiares, tanto em famílias de alta e de baixa renda. Além desse tipo de ausência, existem famílias ainda mais desestruturadas em que os pais estão presos, sofrem de alguma doença ou distúrbio psiquiátricos, tem sérias dificuldades financeiras entre outros problemas. Não preciso de referências para dizer que todas essas situações alteram o comportamento, modo de ver a vida de uma criança.

Cada criança, porém, reage de uma forma a esses problemas, algumas ficam introvertidas, outras ficam violentas e outras respondem fazendo descaso de entidades, para ele, secundárias, como a escola, já que a sua maior preocupação é sobreviver dentro de uma família caótica. Obviamente, uma criança assim, que trata com descaso a escola (acho que em uma situação dessa, a maioria de nós) se mostrará desatento, não fará as lições e poderá ser violento.

Ito & cols. (2013) lembram que uma família desestruturada não é sinônimo de uma família com mãe, pai e dois filhos felizes comendo margarina, mas sim, como relações  permeadas por laços de afinidade, podendo ser de uma avó com os netos, pais homossexuais e o filho e outras. 

Assim, podemos voltar ao caso Jhony, que está descrito na página anterior, fica claro que grande parte da explicação do comportamento de Jhony vem do problema familiar que ele tem, da prisão do pai que não foi abordada pela sua mãe, da ausência dos pais na sua vida, levando essa criança a apresentar comportamentos de revolta com a sua situação que não são compreendidos por terceiro. As consequências de seus atos, como a falta de amigos, as constantes broncas da professora, pioram ainda mais a auto-estima de Jhony, tornando a escola o pior momento de sua vida. Obviamente, Jhony não consegue prestar atenção na aula.

Por isso, cada caso diagnosticado com TDAH deve ser criteriosamente estudado, como é a vida dessa criança? quais são os tipos de estímulos que ela recebe? como é a escola dessa criança? essa criança recebe carinho, atenção de seus pais? como é o ambiente familiar? essa criança tem fome? essa criança tem amigos? Tudo isso deve ser questionado, pois muitas dessas perguntas revelam um motivo para criança não conseguir concentrar-se e que muitas vezes são ignorados por médicos.

Na página "TDAH medicalização" será discutido quais são as causas que os estudos e associações encontraram para o TDAH (obviamente, nada do que foi escito aqui é citado), que levam ao diagnóstico de uma doença e a sua medicalização.